domingo, 17 de abril de 2011

A negação do príncipe encantado


Ao ligar para meu perfilado para marcar uma entrevista, deixei com ele a missão de escolher um local onde ele se sentiria à vontade para abrir os baús de sua intimidade. Ele pensou em uma padaria famosa de seu bairro. Lá poderíamos, entre cafés, sucos e bolos, conversar sobre teatro, carreira e sucesso.

Chegando ao local, notamos que não era a melhor opção. A noite estava incrivelmente agradável, os paulistanos amargavam em sucessivas noites chuvosas, aquela era a primeira noite seca há dias, espontaneamente todo mundo aproveitou aquela sexta-feira para sair e se divertir.  Era horário do jantar, a padaria estava lotada, o cheiro de comida era inebriante e as conversas eram audíveis. Decidimos ir ao apartamento dele. Com sossego a conversa se desenvolveria melhor.

Pelo caminho, um senhor de cabeça branca parou o meu entrevistado, cumprimentou-o e perguntou se a instalação estava funcionando na mais perfeita harmonia. Esse homem fez um trabalho de manutenção no apartamento que eu estava a caminho. Em uma disputa sem vencedores de quem dos dois era o mais sociável e simpático, o senhor prolongou a conversa, deixando-me a espera ao som de uma música agitada enquanto acontecia a aula de spinning na academia onde estávamos parados em frente.

O senhor quase levou um susto quando meu amigo, Marcelo Callegaro, disse ser ator. Imediatamente fez uma pergunta muito comum para os ouvidos de Marcelo: Por que você não faz novela na Globo?. Meu perfilado ri, com certeza ele dá o mesmo riso todas as dezenas ou centenas de vezes em que ele ouviu isso durante a vida, esse sorriso nada mais é que uma tática para ganhar tempo e decidir se responde o que realmente sente ou se prefere dar uma resposta definitiva impassível a objeções.
Antes que ele decidisse, o senhor parece ter tido uma brilhante ideia  e decidiu compartilhar. Você deveria ir ao Faustão, tentar ser ator lá. Conseguir alguma coisa na Globo! Ou então vá ao Raul Gil, você vai conseguir. Marcelo fica desconcertado com tamanha ingenuidade. Pensando bem, você deveria entrar para o elenco de Malhação!. Marcelo desta vez ri copiosamente. Ele tem 31 anos, poderia ser um galã, mas de novela adolescente não seria exatamente o caso, a não ser que ele fosse o professor sexy por quem todas as menininhas alimentam um amor platônico. Um personagem que, de certo modo, ele já desempenha na vida real.

Já sem  a presença do quase empresário ou guru do ator, eu e Marcelo continuamos caminhando rumo ao apartamento e dando prosseguimento à conversa iniciada pelo homem da manutenção. Marcelo tem 14 anos de profissão e nunca pensou em trabalhar em televisão, não foi uma opção muito clara , ou tampouco óbvia. Ele realmente não sabia me responder se poderia ser considerado um perdedor por justamente não querer ser ator de novela e fugir da maré da obviedade.  Na opinião de Callegaro, ator ou artista é considerado como tal pela sociedade brasileira apenas quando está na Tv, preferencialmente na rede Globo. Ainda seguindo sua linha de raciocínio, os brasileiros não sabem distinguir um famoso de um artista. O primeiro faz tudo pela fama e o segundo tudo pela ideologia, pela palavra. Ser famoso já virou uma profissão e Marcelo optou por ser artista.

Marcelo Callegaro não é famoso e nem o ator mais reconhecido no meio artístico, parte desse quase ostracismo é por opção. Tv nunca fez seus olhos brilharem e participar de festas da comunidade artística para fazer networking não faz parte de sua conduta. Talvez por isso, ele seja uma pessoa acessível, adora participar de trabalho de audiovisual de universitários e não raramente dá uma verdadeira aula para essa garotada que o procura para atuar, porém não têm nenhuma noção de direção de atores e, quando sabem dirigir um filme, o fazem de maneira amadora.

Marcelo tem a intenção de futuramente ser diretor de atores, cuidar da arte da interpretação. No Brasil, a pessoa mais reconhecida nessa área é Fátima de Toledo, diretora de atores de filmes como Tropa de Elite, Central do Brasil e Cidade de Deus. Marcelo não passou pelas mãos de Fátima, por isso ele não sabe julgar o processo criativo dela, porém defende a seguinte tese: Ator tem que ter técnica, não precisa sofrer.. Fátima é diferente, busca no âmago do ator toda a interpretação, por isso é muito comum, nos finais das cenas, o ator estar chorando descontroladamente, ou, se for uma cena de luta, ele sair com um braço quebrado. Para Marcelo, buscar a verdade em cena é o maior desafio do ator. Eu, Marcelo, me apaixono em cena. A diferenciação entre o ator e o personagem durante as cenas é quase impossível, Callegaro se envolve tanto na cena, que fica até desconectado da sua realidade, por isso mesmo ele odeia que alguém entre em seu camarim ao fim do espetáculo, por não ter um botãozinho que o desliga automaticamente do personagem quando sai de cena.  

O primeiro personagem profissional do Marcelo Callegaro no teatro foi a raposa da peça O Patinho Feio. Ele tinha acabado de entrar no grupo teatral Sotaque da cidade de Campinas, sua terra natal. Marcelo ensaiava para outra peça quando o ator que fazia a raposa teve um problema e precisou se afastar faltando apenas dois dias da estreia. Com isso, apareceu o convite de ele fazer o personagem. Com apenas dois dias de ensaio, usando um figurino pequeno que apertava seus pés e não o deixava enxergar perfeitamente, Marcelo foi indicado naquele ano para a categoria de melhor ator coadjuvante do festival em que a peça participava. Isso nunca mais aconteceu, mesmo nas vezes em que se preparou melhor.

Seu tipo de personagem predileto são os ardilosos, como a raposa do O Patinho Feio. Contudo, Marcelo sempre é escalado para fazer mocinhos e príncipes.  Os príncipes encantados, personagens chatos para Callegaro, sempre o perseguiram em sua carreira. Apesar de tudo, ele admite ter potencial para ser príncipe, desde que sejam os multifacetados, pois para ele não existem pessoas exclusivamente boazinhas, bonitinhas ou coisa parecida, como é a imagem banalizada de um príncipe. Os personagens, assim como as pessoas, são um emaranhado de sentimentos, personalidades e condutas. Outro mito infantil desconstruído por Marcelo é a Cinderela, que ele considera uma bobona, isso porque ela tem medo e vergonha do que é, medo da sua essência, ela foge da festa exatamente porque, em minutos, voltaria a ser quem realmente é. Fica clara a indignação de Marcelo por tal história servir de exemplo para as crianças.

Ser escalado como príncipe acaba sendo perfeitamente entendível quando se conhece Marcelo Callegaro. Ele é bonito, alto, inteligente, sedutor, confiante e interessante. Tem todos os ingredientes para ser um príncipe da vida real. Sua beleza certamente abriu muitas portas e ele sabe aproveitar disso sem se tornar um canastrão.

Desde criança, ele sempre foi uma espécie de exemplo, aluno aplicado e o número 1 da sala, até conhecer o teatro, que derrubou todos os seus paradigmas da educação, como o eles mesmo costuma dizer. Marcelo fazia um curso técnico de eletrônica, na época o curso mais promissor, não sabendo exatamente porque o fazia, apenas tinha ciência que o odiava e mesmo assim era o melhor da turma. Aos 17 anos, teve que fazer uma escolha que mudaria sua vida, tirar sua carteira de motorista ou, com o dinheiro, fazer o primeiro curso de teatro. Não que seu pai o tivesse lhe dado essa opção. Na verdade ele ganharia apenas a carta de motorista, mas optou pelo curso. A habilitação só viria aos 19 anos.

 A expressão estudar para ser alguém na vida tira Marcelo do sério, pois, na medida em que a pessoa nasce, ela já é alguém. De qualquer maneira, Marcelo estudou oito anos para ser o ator que é hoje, por isso mesmo faz questão de diferenciar famosos e artistas. Ele teve apoio de sua família para seguir a incerta carreira artística, só uma exigência partiu de seu pai: brilhar no que fosse que escolhesse para sua vida. Ser ator foi uma escolha lógica, Marcelo nunca pensou em outra hipótese, ele respira teatro desde criança.

Há três anos, Marcelo Callegaro faz parte do elenco da companhia de teatro XPTO, estreou no grupo com a peça O Público, de García Lorca. Antes de ingressar no grupo, Marcelo tinha dado um tempo para reconstruir sua vida após um investimento errado. Ele estava dando aula de inglês fazia dois anos e meio quando apareceu o teste. Para fazê-lo, escreveu uma carta de apresentação totalmente esquizofrênica, como ele mesmo diz, que poderia ser resumida a um ovo de avestruz. No dia do teste, todos queriam saber quem era o Marcelo Callegaro que comparou a existência, o teatro e aquela própria carta a um ovão. Foi fácil identificá-lo, Marcelo chegou no dia de seu teste com um ovo de avestruz de verdade. Unindo a audácia ao talento, foi rapidamente convidado a ingressar no grupo. Hoje Marcelo trabalha em um projeto itinerante de teatro de boneco e teatro de objetos. 

Marcelo conclui que hoje o teatro virou um ato de resistência. Resistir ao entretenimento, ao cinema, aos efeitos do tempo e da sociedade 3.0 de consumo. A função do teatro é fazer o homem pensar, é transcender, quase um ato ritualístico, é criar um movimento de transformação. Hoje o teatro tem um príncipe multifacetado como defensor.