Este texto é em homenagem a minha avó Aparecida Maria dos Reis, uma senhora caipira!
O adjetivo "caipira" é geralmente empregado de forma jocosa por uma grande parcela da população. Ser caipira muitas vezes é ser confundido como tolo, sem jeito, inocente, inadequado ou simplesmente sem cultura ou pouco inteligente. O antropólogo brasileiro, Darcy Ribeiro, escreveu em seu fantástico livro "O Povo Brasileiro" a formação dessa etnia e entre outras. Vou aqui compartilhar um pouco do conhecimento do Darcy sobre os caipiras, que são os verdadeiros camponeses brasileiros.
Nos primeiros anos de Brasil, a zona rica era o Nordeste onde havia os engenhos de açúcar e a periferia era o Sudeste. Em São Paulo falava-se até um linguajar particular, a Língua Geral, que nada mais era do que a mistura do português com a variante do idioma dos índios. Não por acaso que, principalmente, no estado de São Paulo há vários nomes indígenas para regiões, como por exemplo, Anhangabaú (que significa "rio dos malefícios do diabo"), Jaú (que significa "peixe guloso"), Moema (que significa "mentira"), Jaçanã (que significa "ave que tem patas em forma de nadadeiras") e assim por diante.
Na região Sudeste, mais precisamente nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso e norte do Paraná, eram uma região muito pobre e as pessoas viviam de forma muito precária, parecido com o modo de vida dos índios da região. Esses antigos moradores foram integrados à sociedade paulista, o que era inédito, pois até antes índio vivia entre os índios e os portugueses entre os portugueses, não havia uma mestiçagem de culturas, porém, em São Paulo isso começou a mudar. Prova disso é a Língua Geral.
Os índios foram incorporados para serem combatentes em batalhas, já que o povo paulista era muito batalhador, como não havia engenhos, eles tinham que conquistar riquezas de outras maneiras, uma delas era com a guerra e nós sabemos, guerra dá lucro. Como a população feminina portuguesa era míngua, foi bastante comum o cruzamento entre portugueses e as índias, o que originaram os mamelucos e esses posteriormente os caipiras, que nada mais é, que a mistura entre o português e o índio muitas gerações depois.
São Paulo surgiu com uma configuração histórico-cultural de povo novo, plasmada pelo cruzamento de gente de matrizes raciais díspares e pela integração de seus patrimônios culturais sob a regência do dominador. Mesmo assim, esses mamelucos viraram-se contra os índios e tornaram-se o grande terror do povo indígena, caçando-os e vendendo-os como mercadorias para os engenhos de açúcar nordestinos, isso muito antes de qualquer negro chegar ao Brasil. E foi assim que os bandeirantes apareceram na história brasileira. Estima-se que cerca de 300 mil índios foram arrancados de suas aldeias subsistentes para serem vendidos aos senhores de engenho no Nordeste. E essa caça era feita com muita violência, tanto que um dos maiores bandeirantes foi o Anhanguera, que significa em tupi-guarani "diabo velho".
A região Sudeste permaneceu pobre até a descoberta de ouro e de diamantes, principalmente em Minas. Com isso a região ficou super valorizada e uma migração em massa aconteceu na região com pessoas vindas do país todo e de Portugal, consequentemente a região transformou-se na área mais densamente povoada das Américas, isso por volta de 1750. Todos estavam em busca das riquezas de mineração. Isso trouxe grandes mudanças para o Brasil, como a transferência da capital colonial de Salvador para o Rio de Janeiro (lembrando que era um local paupérrimo), ocupação da região sulina conquistada pelos paulistas e expansão do pastoreio nordestino, além do declínio da força nordestina. As Minas Gerais ficaram riquíssimas, tanto que as cidades históricas mineiras são até hoje exemplo de luxo e poder da época. O estado viveu longos anos de uberdade e uma população mais culta viveu no local que já tinha uma ampla rede urbana. Vestiam-se conforme a moda européia, faziam arquitetura e pintura da mais alta qualidade, criando o barroco brasileiro, leitura lírica e até política libertária!
Com a decadência do ouro, toda a área submerge numa economia de pobreza, com a regressão cultural resultantes. Antigos mineradores e negociantes se transformam em fazendeiros; artesãos e empregados se fazem posseiros; citadinos ruralizados espalham-se pelos matos, fazem-se roceiros de lavouras de subsistência, criadores de gado, cavalos, burros e porcos.
Com isso nasce a cultura brasileira rústica, que se fala a língua portuguesa com influência indígena. Toda aquela região anteriormente citada torna-se um local de cultura caipira, ocupada por uma população totalmente dispersa e desarticulada. A vida rural caipira o condiciona a um horizonte culturalmente limitado de aspirações, que faz parecer desambicioso e imprevidente.
O caipira virou símbolo daquele estereótipo de um brasileiro que cria e planta o que vai comer e da sua sobra vende ou troca por outras mercadorias com outros caipiras da sua região. Ele não cresceu com a sociedade capitalista, ele preservou sua cultura e princípios compadrios. Eram donos de pequenas propriedades e nunca muito distantes de outros moradores, foi assim que muitas vilas apareceram. Porque mesmo eles de certa forma distantes das grandes metrópoles, eles não se distanciam ao ponto de viverem despercebidos. Quem assim se comportava, era mal visto pelos outros.
O sujeito caipira conseguiu preservar seu modo de vida até o início do cultivo comercial do algodão, fumo e café. Uma reordenação institucional se vai implantando no nível civil e no eclesiástico. Com a valorização das terras, os caipiras aos poucos foram perdendo a propriedade das mesmas para os grandes fazendeiros, sendo assim, eles tiveram duas opções: trabalhar para os grandes proprietários ou então virarem meeiro ou arrendador.
Não foram poucos que viraram reféns dessa técnica dos donos de grandes propriedades e por anos e anos muitos caipiras viviam nessas condições, trabalhavam em terras alheias e pagavam uma espécie de talha.
Os caipiras nunca tiveram grande talento para serem empregados comuns, como os italianos e espanhóis, por isso transformaram-se em ícones esculhambação. Daí que vêm todos aqueles adjetivos jocosos do início do texto. Os caipiras simplesmente são talentosos para tratarem da terra e viverem naquela sociedade compadrio. O brasileiro caipira em pleno século XXI é uma espécie em extrema raridade, eles já foram "infectados" pelo modo de viver das grandes cidades, mas ainda é possível encontrar um ou outro subsistente, que cria sua meia dúzia de vacas leiteiras, que faz o queijo caseiro utilizando litros e litros de leite, que mata um leitão ou porco gordo nas festas de família, que faz pamonha aos quilos, que tem sua pequena plantação de mandioca no quintal do terreno, que todo final de ano come diariamente sua manga espada colhida diretamente do pé, que cria galinhas e tem três cachorros magrelos no sítio.
Daqui não muitos anos, a figura do caipira virará um personagem da história do Brasil, como o senhor de engenho ou o fazendeiro escravista, ou então será lembrado apenas pelo Jeca Tatu e pelo caipira picando fumo do quadro de Almeida Junior.
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
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5 comentários:
ótimo texto. Tenho muito orgulho das origens caipiras da minha família também.
Acredito que o caipira já se encontra no rol dos grandes personagens da histórias brasileiras, independente do preconceito que há em nossa sociedade.
Como você bem disse, o caipira em certo momento da história se tornou um marginal. E todo ser a margem do "esquemão" capitalista acaba sendo reduzido a um clichê geralmente negativo e jocoso. Acontece isso, por exemplo, com os nordestinos, sobretudo os baianos, em SP.
Leandro...
Verdade. Boa matéria.
Caipira virou sinônimo de " boboca", " abestalhado" e vai por aí .
Mas ele não vai virar história, o " caipira " já é história, história do nosso Brasil de contrastes.
Bela homenagem !
Beijão
Que texto bem escrito! Um orgulhinho :3~
Acho que os 'caipiras' simplesmente são talentosos não só por tratarem da terra e VIVER dela, mas também por não participar ativamente dessa sociedade que preza o consumismo acima de tudo! Eu tenho orgulho da minha origem caipira das Gerais!
Super entendo isso de ser 'caipira'. Quem é caipira tem uma raiz do caraleo, mas quando que entendo é pela menção negativa do fato. Por ex.: quem mora em cidades do interior, geral adora falar 'dae caipira'; o que não tem nada a ver pq como eu disse caipira é um lance além do geográfico, tem uma cultura por trás disso tudo, enfim.
Leandro parabéns pelo texto , ele foi muito bem escrito e adorei a visão que você teve do passado e do presente.Sou estudante de museologia, e estudo uma disciplina que se chama "etnologia do Brasil", e dentro da disciplina esse livro de Darcy Ribeiro é como se fosse uma biblia para nós.Seu texto foi muito util para mim, me ajudou a compreender um pouco mais do Brasil caipira...
Valeu....
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